por Robinson Cavalcanti
A Igreja nasce da mente e do coração perfeitos de Jesus. É o povo da nova aliança, de todos os povos, que tem a missão de salvar, santificar, sarar, exorcizar, transformar, apontando, ensaiando e anunciando a presença e a plenitude futura do reino de Deus. É inegável a iniciativa e a importância da Igreja, que recebeu de Jesus o sopro do Espírito Santo, que a assiste até a consumação do tempo. Os problemas da Igreja não estão na sua iniciativa divina — que a vê como mistério/sacramento na história e como a noiva das bodas finais —, mas da sua composição humana. Nela sempre haveria “trigo” e “joio”, e a nós não caberia fazer a separação entre ambos. Nela apareceriam sempre “falsos profetas” com “outros evangelhos”. Nela estariam os que nunca foram e as sementes que nunca germinaram. Nela estariam os “carnais”, que não se deixariam trabalhar pelo Espírito Santo. Historicamente, a Igreja teve seus bons e maus momentos, mas tem subsistido há dois mil anos. Periodicamente, tem carecido de reformas e avivamentos para corrigi-la dos seus desvios. Do coração do Senhor nos chegam duas preocupações centrais: a preocupação com a unidade, “para que todos sejam um”, e a preocupação com a verdade: “o Espírito conduz a toda a verdade”. A divisão do Corpo atenta contra a verdade; e a unidade sem verdade é uma falsa unidade. A Igreja é portadora de doutrinas, de verdades reveladas, universais e permanentes, sistematizadas e confessadas, emanadas das Sagradas Escrituras, legadas pela tradição apostólica e pelo consenso dos fiéis.
Confessamos com o Credo Niceno: “E cremos na Igreja, Una, Santa, Católica e Apostólica”. A Confissão de Augsburgo, luterana, de 1530, em seu artigo oitavo ensina: “a Igreja cristã, propriamente falando, outra coisa não é senão a congregação de todos os crentes e santos.”. E a Confissão Helvética, calvinista, de 1562, afirma: “Segue-se, necessariamente, que esta é uma só Igreja… por isso chamamos de católica, porque universal”. Emil Brunner, em O Equívoco sobre a Igreja, chama a atenção para a autoridade apostólica: “E o que eles receberam deve ser passado para o mundo… tem o peso pleno da autoridade final. Sem os apóstolos não haveria cristianismo… sem a autoridade divina dos apóstolos não haveria a Ecclesia”. Aprendemos com os apóstolos pela leitura do Novo Testamento, mas aprendemos também com a geração seguinte, os pais apostólicos (discípulos dos apóstolos), e com a seguinte, os Pais da Igreja (discípulos dos discípulos dos apóstolos). Eles tomaram três decisões fundamentais para a Igreja como instituição: 1) o estabelecimento do próprio cânon (quais livros deveriam ou não integrar o Novo Testamento), fechando a revelação escrita especial; 2) o estabelecimento da doutrina (o que deveria ou não deveria ser crido), o que foi feito, principalmente, com a redação do Credo Apostólico e do Credo Niceno; 3) o estabelecimento de uma forma de governo, o que foi feito com o episcopado histórico, tão bem elaborado, no século segundo, por Inácio de Antioquia e Irineu de Lyon, e, no século terceiro, por Cipriano de Cartago. Esses princípios permanecem inalterados, no Ocidente e no Oriente, até a Reforma Protestante do Século 16.
Cristo não criou uma Igreja de anjos, mas de pessoas humanas, que deveria ser uma só instituição, o que, pelo pecado, nunca ocorreu. As instituições não apenas são inevitáveis para a vida em sociedade, como também fazem parte da capacidade criativa da humanidade, no exercício do mandato cultural recebido do Criador. Os apóstolos foram o epicentro dessa nascente organização, continuada e consolidada por seus sucessores: os bispos. Nunca tivemos um único centro administrativo, mas diversas sés, situadas nas cidades-chaves do Império Romano, com supervisão sobre as regiões vizinhas, com destaque para as capitais: no Oriente, Constantinopla; no Ocidente, Roma, além de Jerusalém, Antioquia e Alexandria. Diferenças culturais e de pontos doutrinários tópicos concorreram para a fragmentação da cristandade antiga em quatro ramos históricos: A Igreja Assíria do Leste (nestorianos), os pré-calcedônios (sirianos, armênios, coptos, etíopes e indianos), os bizantinos e os romanos, sendo que os dois primeiros nunca estiveram sob jurisdição dos dois últimos, e Bizâncio nunca esteve subordinado ao bispo de Roma, apenas nele reconhecendo um “primado de honra”. Iniciamos o século 16 com quatro ramos do cristianismo e terminamos a era da Reforma com onze. Diante do caos institucional posterior, emanado dos Estados Unidos nos últimos duzentos anos, com 38.000 “denominações”, devemos reconhecer que o caminho da cura para a Igreja passa pela volta aos ensinos da Reforma (que se pretendeu uma reforma e não uma refundação), bem como pelos ensinos de antes da Reforma, dos apóstolos aos pré-reformadores. Sem passado não há presente e não haverá futuro. No meio de tantas doutrinas e “doutrinas”, nos falta conhecer a doutrina da Igreja. Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política – teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo – desafios a uma fé engajada.
Texto publicado originalmente por Revista Ultimato.
Fonte: Aliança Evangélica