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A proibição de fazer imagens

A relação entre arte e fé sempre foi tensa. A crise vem desde que o povo de Israel se deparou com o segundo mandamento em Êxodo 20.4-6. A proibição de fazer imagens marcou o povo do Senhor. Muito embora o foco do mandamento fosse a idolatria, ele acabou sendo traduzido como um impedimento à representação figurativa do sagrado.

A igreja cristã primitiva igualmente lidou com as artes sob essa compreensão e, por isso não foi muito além da utilização de símbolos como a cruz, a pomba, o peixe, entre outros. A música, a dança, o teatro e outras expressões artísticas foram rejeitadas pelos pais apostólicos por suas associações com a cultura greco-latina.

Somente após o quarto século é que as artes foram se achegando lentamente à igreja. Na Idade Média, a arte já havia sido totalmente incorporada, mas servia praticamente apenas para fins sagrados. O Papa Gregório valorizou as pinturas com temas religiosos e, num contexto de pouca instrução e analfabetismo, a exaltou como a Bíblia dos iletrados. Por esta razão, os artistas passaram a produzir seus quadros segundo as interpretações teológicas do clero. A música também recebeu a condução da igreja. O canto gregoriano, o mais conhecido dos cantochões, foi elevado a uma categoria superior, sendo ensinado e administrado pela igreja.

Toda arte vem de Deus?

É importante citar que, embora a igreja tenha trazido para si a responsabilidade de elaborar, produzir e administrar a arte, ainda se mantiveram as “controvérsias iconoclastas”, ou seja, as oposições às imagens e outras expressões de arte. Na Igreja Oriental, houve grande oposição às artes nos séculos oitavo e nono. Anos mais tarde, no período da Reforma, Andreas von Karlstad, um dos contemporâneos de Lutero, instigou o povo a tomar os objetos artísticos dos templos, levá-los para as praças públicas com o fim de quebrá-los e incendiá-los. Esse “zelo” foi iniciado na Alemanha e se espalhou pela Europa.

Todavia, o pensamento não contou com a simpatia generalizada. Lutero rejeitou a atitude de Andreas e seus parceiros. Entendia que as imagens são memoriais e testemunhos, por isso deveriam ser mantidas e toleradas. Calvino igualmente se manteve favorável à arte, encorajando e recomendando o seu uso legítimo. Para ele, todas as formas de artes vêm de Deus e devem ser consideradas como invenções divinas.

A soberania divina e a graça comum

Uma das maiores contribuições da Reforma para a cultura e as artes teve origem a partir da compreensão teológica acerca da soberania divina. Para os reformadores, Deus é Senhor de todo o universo e seu domínio atinge toda a existência, todos os espaços. Entendiam que, para além da graça particular – que opera para a salvação –, existe uma graça maior, chamada de graça comum. Ela é dada por Deus a toda a humanidade, suavizando a maldição que repousa sobre o mundo, suspendendo seu processo de corrupção e permitindo o desenvolvimento da nossa vida. Essa graça comum é como a chuva que cai sobre bons e maus, como o sol que brilha sobre justos e injustos. É o favor divino que banha e ilumina toda a humanidade.

Sob essa compreensão, as artes e a ciência deixaram der ser exclusividade da igreja. Como expressões da graça comum, elas foram devolvidas e restauradas à sua própria inspiração. A maldição já não estava mais no mundo, mas naquilo que nele é pecaminoso. O movimento da igreja, então, mudou. Ao invés de recolher-se em seu espaço monástico, passou a servir a Deus em todos os espaços. Agora, louvava a Deus nos cultos e o servia no mundo.

A igreja deixou de ser a promotora exclusiva da arte e a ciência. Reconheceu-se que a arte não poderia originar-se do diabo, pois ele é destituído do poder criativo. Satanás não cria; apenas degenera a criação de Deus. Por outro lado, também não é o homem quem cria; ele apenas pode empregar os dons dados por Deus que agora estão à sua disposição. É Deus quem nos presenteia com os dons artísticos.

Outro caminho é possível para além de uma arte panfletária e proselitista?

Desde então, os quadros deixaram de retratar exclusivamente temas bíblicos ou religiosos. A música expandiu-se para além dos antigos horizontes. No entanto, a igreja manteve a responsabilidade de comunicar a Palavra de Deus ao mundo, enquanto vive no mundo. E as artes passaram a ser um poderoso instrumento para tal.

Entendendo a relação da Reforma e da arte com esse pano de fundo, chegaremos a tristes constatações. Veremos que a igreja atual caminha em outra direção. Hoje, parece-nos que as artes, que deveriam ser um ambiente para a manifestação dos valores do Reino de Deus, sofrem de um processo antagônico. A igreja caminha em sentido contrário, reivindicando para si uma arte exclusiva, dicotômica, excludente. Ao mesmo tempo, condena toda e qualquer arte que não tenha como origem o ambiente eclesiástico, e um fim litúrgico ou panfletário proselitista.

Vemos que a igreja dos nossos tempos, não somente abdicou a conquista da Reforma com respeito às artes, mas desfigurou sua beleza e força. Enquanto comemoramos os 500 anos desse importante movimento que transformou o mundo, precisamos refletir sobre nossa atuação na cultura, especialmente no campo das artes, resgatando esse importante legado. Temos ainda uma longa jornada pela frente!

Nota: Este texto foi escrito a partir da participação do autor em “Diálogos na Web 500 Anos Reforma Protestante”, uma iniciativa da Aliança Evangélica. Publicado graças à parceria entre Aliança Evangélica, Ultimato e Basileia.

• Carlinhos Veiga é pastor, músico e jornalista. Escreve a seção Novos Acordes na revista Ultimato.

Fonte: Aliança Evangélica